sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O MELHOR CONTO JÁ ESCRITO.

No texto abaixo, o escritor espanhol Enrique Vila-Matas fala sobre o conto Gato Na Chuva, de Hemingway.

- Parece que vai chover – disse aquele dia ao entrar na aula.
Era um meio-dia cinzento de primavera, mas não havia ameaça alguma de chuva. Se disse aquilo foi só para que os estudantes começassem a entrar na matéria, na matéria do conto que pensava em ler para eles.
Pouco depois lhes dizia:
- Apesar do que anunciaram ontem os professores deste centro, não vou me limitar a falar do relato breve em geral. Penso aproveitar que os tenho aqui para que me ajudem a entender um conto de Hemingway que nunca entendi por inteiro. E mais: vou converter vocês em carne de conto, porque o que acontecer durante a próxima hora nesta aula penso contá-lo em um relato.
Me pareceu que, sabedores de que podiam converter-se em material literário, os estudantes se esqueceram de qualquer tentativa de dormir durante a aula, e alguns até me sustentaram o olhar, desafiantes; outros pareciam se perguntar o que me propunha fazer com eles.
O conto de Hemingway – lhes disse – se intitula “O gato na chuva” (transcrito no post anterior). Faz muitos anos, quando li que García Marquez considerava esse conto o melhor que havia lido em toda a sua vida, me precipitei a lê-lo, e não o entendi; tornei a lê-lo de novo e o entendi ainda menos.
Fiz uma pausa, e logo acrescentei:
- O que menos entendo em tudo isso é que seja o melhor conto do mundo.
Como se tratava de um conto muito breve, não tardei quase nada em lê-lo aos estudantes, embora antes os tenha advertido de que, por ser um relato de Hemingway, havia que se ter em mente que o autor foi sempre um mestre na arte da elipse e que conseguia sempre com que o mais importante da história nunca fosse contado. Quer dizer, que a história secreta do conto se construía com o não-dito, com o subentendido e a alusão. Isso explicaria que o relato pudesse parecer trivial (um casal de jovens americanos, viajando pela Itália, estão num quarto de hotel: enquanto ele lê na cama, ela se enternece com um pobre gato que vê debaixo da chuva e diz que gostaria ter um gatinho que deitasse em suas saias e, definitivamente, lhe fizesse companhia), apesar de que na realidade não soubéssemos com certeza se Hemingway teria posto toda sua perícia na narração hermética da história secreta.
Li o conto e logo pedi aos estudantes que, por favor, me ajudassem a encontrar qual podia ser a história secreta que se desprendia daquele relato.
Uma estudante levantou a mão e falou de outro conto parecido de Hemingway em que se falava de elefantes brancos e na realidade a história secreta era a gravidez de uma mulher e seu calado desejo de abortar.
Outra menina nos falou da insatisfação sexual da jovem que queria um gato.
Um estudante acrescentou que talvez a protagonista de “O gato na chuva” tivesse um desejo oculto de maternidade.
Por último, uma garota que parecia estar chorando disse que tudo era muito simples.
- Muito bem – lhe disse – adiante, se é tão simples.
- Ela era Hemingway – disse.

Me dei conta de que, graças aos estudantes, entendia melhor que antes o conto, embora seguisse sem entender por que pudesse ser o melhor conto do mundo. De pronto, me ocorreu pensar que talvez não havia que interpretar nada naquele relato de Hemingway, quem sabe o conto era completamente incompreensível, e aí radicava sua graça. Contei aos estudantes o final do conto que escreveria à tarde: eu voltava para casa e dava voltas a suas interpretações do conto e de pronto descobria que aquele relato era simplesmente incompreensível.
- Quando leio algo que entendo perfeitamente – lhes disse – o abandono, desiludido. Não gosto dos relatos que balançam perigosamente no abismo do óbvio. Porque entender pode ser uma condenação. E não entender, a porta que se abre.
Então, a estudante que parecia estar chorando levantou de novo a mão.
Por um momento pensei que se aquela estudante acabasse chorando, logo a seguir choveria. É que na juventude eu conheci uma moça que sempre que chorava chovia.
A estudante me disse então que lhe parecia muito bem que tivesse encontrado o final do meu conto, mas que me recomendava que, ao escrevê-lo, pensasse nos leitores, ou seja, que pensasse nela.
Creio que a desdenhei. Mas aqui estou agora sem entender nada, nada!, tampouco deste conto.

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